Diz o samba: - Sou africano, cheguei ao Brasil há muitos
séculos, em navios negreiros, a serviço da escravidão. Foi duro, houve choro e
ranger de dentes. Trabalhei sem renumeração, massacrado, humilhado e ofendido,
como em “os miseráveis”, de Victor Hugo. Foi a fé no candomblé e a cultura que
me salvaram.
Cantávamos, dançávamos a capoeira para não enlouquecer e não
esquecer as raízes africanas.
Depois veio a "libertação", fui para a Bahia e depois
para o Rio de Janeiro, meu berço original. Lá ocupei os morros, as favelas e os
botecos, onde me apresentaram a feijoada e a cachaça. Formamos um trio de ouro
de nossa cultura e de nossas festas, e aí foi fácil conquistar os salões, as
avenidas e a burguesia.
Hoje, sou o maior espetáculo da terra, juntamente com os
desfiles das escolas de samba.
O samba pergunta ao futebol: -
De onde você veio com tanto orgulho?
- Vim da Europa, sou filho
de um país orgulhoso e que já dominou o mundo: a Inglaterra.
- E como você chegou ao
Brasil? Também nos navios negreiros?
- Não. Cheguei em 1894, a
bordo de um navio luxuoso de cruzeiro, por iniciativa de um estudante
brasileiro, filho de Ingleses, chamado Charles Miller. Trouxe a bola e as
regras do jogo. Espalhei na elite paulista e inglesa, residentes nessa época em
São Paulo.
- E o primeiro jogo, como
foi? - Foi na Várzea do Carmo, em São Paulo. Você não era nem nascido, diz o
futebol.
O samba protesta: - Eu já
existia na alma dos brasileiros, com o maxixe, o miudinho e o olodum, quando
aqui cheguei com a escravidão. Fiquei escondido nas senzalas e só em 1917
resolvi mostrar a minha cara, com o samba de Donga "Pelo telefone".
Logo fui chamado pelo Chefe de Polícia para dar explicações. Mas, malandro
velho, lá não fui!
- Como você tomou conta do
Brasil? - Foi fácil. Saímos de São Paulo e fomos para o Rio de Janeiro, depois
tomamos conta do Brasil. É bom frisar que o jogo nesta época pertencia só à
elite, depois chegou ao povo e surgiram os campos de pelada nas várzeas de todo
o Brasil.
- Houve preconceito contra
vocês? Pergunta a música. - Sim. Houve,
da mesma maneira que houve com você. Existia uma lei da vadiagem, pela qual era
punido quem jogava bola nas ruas ou tocava violão à noite, tomando cachaça,
principalmente os pretos.
Quanto ao preconceito é bom citar Albert Einstein, que disse: - É
mais fácil quebrar um átomo do que um preconceito.
A música faz um desafio ao futebol: Pede que ele faça um
comparativo em relação à sua glória.
O futebol não se faz de rogado e diz que sua glória não cabe nem
em um livro.
- Fui cinco vezes campeão do mundo. Ganhei meu primeiro jogo
internacional em 1914. Depois fui campeão Sul-americano de 1919 e 1922. Meu
primeiro ídolo foi um mulato, chamado Artur Friedenreich, filho de um Alemão
com uma mulher negra do Brasil.
Depois de tanta banca a música propõe que se tire a dúvida
de quem foi mais importante para o Brasil, em “uma linha do tempo”, de
1930 a 1970.
A música resolveu mostrar todos os seus valores, procurando
assim humilhar o futebol. Lembra que de 1930 a 1950 foi sua época de ouro, e
mostra ao futebol seus compositores, letristas e instrumentistas: Ari Barroso,
Orestes Barbosa, Noel Rosa, Lamartine Babo, João de Barros, Mário Reis, Sílvio
Caldas, Orlando Silva, Carlos Galhardo, Carmem Miranda, Luís Americano,
Benedito Lacerda, Dante Santoro, Luperce Miranda e Pixinguinha (Alfredo da
Rocha Viana).
O futebol reconhece seus erros e faz uma autocrítica: - Não
fomos bem nas Copas de 30 e 34. Partimos para a primeira Copa com jogadores
cariocas e apenas um paulista. Fomos desorganizados e perdemos. Na Copa de 34,
a disputa entre Rio e São Paulo agravou-se, em virtude do profissionalismo que
não foi aceito por todos.
Mas, em 1938, começamos a mostrar nosso valor na França, com o
desempenho de Leônidas da Silva, que foi o melhor jogador e artilheiro da Copa,
com sete gols. Foi considerado “homem borracha” e o melhor executor da
bicicleta, uma jogada criada por Petronilo. Podemos citar também Domingos da
Guia, conhecido como o “divino mestre”, que jogou no Brasil, no Uruguai e na
Argentina. Nesta época, se destacaram outros valores do futebol brasileiro.
A música retruca: - Nós somos mais criativos que vocês. Temos o
choro, nosso pai-avô. O baião, a música nordestina, a bossa nova e o
tropicalismo. Tudo isso, de certo modo com influência do samba.
O futebol lembra à música: - No período de 12 anos, de 1958 a
1970, em que fui três vezes campeão do mundo, nenhum outro país conseguiu essa
façanha.
Mas a música lembra ao futebol: - Ao meu lado está o carnaval, que
é a maior festa do Brasil, e talvez do mundo. Com os trios elétricos e o olodum
na Bahia, o frevo em Pernambuco e o samba no Rio de Janeiro.
Mas, o futebol não se dá por vencido, e lembra à música um fato
de grande expressão: a popularidade de Pelé, considerado o melhor jogador do
mundo. Mais popular que o próprio Papa.
A música ri e lembra ao futebol que uma andorinha só não faz
verão.
O futebol mostra a injustiça dessa expressão e lembra à música
que não era apenas uma andorinha. Eram muitas: Didi, Zizinho, Domingos da Guia,
Leônidas da Silva e Garrincha. Lembra também um fato histórico pouco conhecido
pelos brasileiros: Pelé e Garrincha, jogando juntos na seleção disputaram 40
partidas e nunca perderam.
O choro, avô do samba, que é o gênero musical mais velho,
preocupado com as divergências entre o samba e o futebol, faz um apelo
dramático (quase chorando), lembrando que os dois são as maiores expressões
culturais nossas, que colocaram o Brasil no topo do mundo.
O choro propõe uma trégua e pede a Valdir Azevedo para executar
o choro de Pixinguinha “1x0”, que foi composto para homenagear os campeões
sul-americanos de 1919. E propõe também um jogo simbólico entre a música e o
futebol. Uma pelada, com muita cachaça, uma roda de samba e feijoada.
O choro assume o compromisso de apitar a partida e ainda levar
as pastoras de Ataulfo Alves, as mulatas e as “marias chuteiras” de todo o
mundo.
O time do futebol brasileiro entra em campo com a seguinte
formação: Gilmar, Djalma Santos, Mauro, Nilton Santos, Zito,
Clodoaldo, Didi, Garrincha, Zizinho, Pelé
e Canhoteiro.
O
time da música brasileira era composto por João Gilberto, Ataulfo Alves, Noel Rosa, Pixinguinha, João da Baiana, Ari
Barroso, Tom Jobim, Orestes Barbosa,
Sílvio Caldas, Orlando Silva e Villas Lobos.
O choro reconhece, com tristeza, que no momento tanto a Música
Popular Brasileira como o futebol não atravessam um bom momento.
Mas lembra: - O samba e o futebol
agonizam, mas não morrem!
Givaldo
Soares
(Cirurgião Dentista)