Entrevista
concedida pelo Dr. Murilo Barros, em
21.10.18, ao Dr. Givaldo Soares, ícone da Odontologia Potiguar, Presidente da
Confraria da Amizade, e insigne cambista do Jogo do Bicho, na paradisíaca
cidade de Lagoa dos Gatos.
1.
Fale
um pouco da sua família e da sua infância em Mulungu.
- Minha família era composta de 13 irmãos, mas 03 não
vingaram, pois Maria e Peri morreram na primeira infância, de gastroenterite;
Sandoval morreu de um susto: - Um cachorro chamado Tupan, perseguindo uma
galinha, pulou por cima da rede onde ele dormia; a galinha aos gritos, e Tupan
latindo; Sandoval – quatro meses de idade – assustou-se e chorou até morrer, 02
dias depois.
Criaram-se 10: Aymoré, (Ei-eia), José
(Bebé), Osvaldo (Nanã), Isa (Didia), Elsa (Maninha), Leonor (Madrinha), Stela (Nego
veio), Leonardo (Tijubina), Robério (Seu Vigário) e Eu (Meleca) - os apelidos
faziam parte da cultura da época.
Morávamos no Sítio Condor, a 800m de altitude, na Serra de
Baturité/CE.
A casa tinha uma porta e duas janelas de
frente, era de telha-vã e piso de terra batida. A escola mais próxima ficava a 03
léguas de distância, e só os irmãos mais velhos a frequentavam. Os outros foram
alfabetizados em casa, pelos mais velhos.
Contam que numa noite, todos deitados e
as lamparinas apagadas, eu, aos 03 anos de idade abri o berreiro: - tai, tai, tudo dormindo e eu não!! Foi
uma risada geral, mamãe tirou-me da rede, e dormi ao seu lado na cama. Dias
depois, com todos sentados à volta da sala, ouviam uma das irmãs ler o romance Romeu e Julieta. Eu saí da minha cadeira
e, no meio da sala, tirei a roupa e anunciei: (Tai, tai, tudo vestido e eu nu!) Minha mãe tirou a chinela e eu fui dormir com
a bunda ardendo...
2.
Onde
você fez seus estudos secundários?
- Fui alfabetizado em casa, quando fui
morar em Baturité, Dona Belarmina Campos em 03 meses me deu atestado do curso
primário. O que me permitiu fazer o exame de admissão ao ginásio. Cursei os 03
primeiros anos no ginásio Domingos Sávio, em Baturité. O 4º e último ano cursei
no colégio Lourenço Filho, em Fortaleza. Colei grau de Bacharel em Ciências e
Letras – Avalie só – no dia 23.12.1945. A turma foi denominada Força Expedicionária Brasileira, em
homenagem aos pracinhas brasileiros que voltaram da Itália cobertos de lama e
glória.
O curso científico fiz
em Fortaleza, no Colégio Lourenço Filho. Isto foi em 1948, um dos anos mais
atribulados dos 90 que tenho vivido. Primeiro, fui preso por quebrar os bondes
de Fortaleza. Fui expulso do Centro Preparatório de Oficiais da Reserva do Exército
– CPOR - por subversão. Fui aprovado no vestibular de Medicina, da Faculdade do
Ceará, mas a 14ª Região Militar, através do ofício secreto número 01, proibiu a
minha matrícula. Aconselhado pelo Secretário, Dr. José Carlos Ribeiro, arribei
para Recife.
3.
Por
que fez opção pelo curso de Medicina em Recife?
- Quando a minha
aprovação no vestibular de Fortaleza foi publicada, eu fui me matricular depois
de um fim de semana de comemoração. O Dr. José Carlos Ribeiro, Secretário da Faculdade,
disse que não podia me matricular porque o Exército fecharia a Faculdade.
E
concluiu: - Entre você e a Faculdade,
optamos pela Faculdade.
E completou: - Quer
um conselho? Se quer ser médico vá embora daqui.
Só existia Faculdade
de Medicina em Belém do Pará, Recife, Salvador e no sul do País. Recife era a mais
viável. Mas precisava de dinheiro.
Passei a vender bordados, e montei um sistema de vendas pelo correio, em
sociedade com meu irmão, Aymoré, que morava em São Paulo.
Apurei 12 contos de reis
que, pelos meus cálculos, dava para financiar os 03 primeiros anos em Recife.
4.
Como era Recife nessa época, no plano social e
político?
- A minha chegada em
Recife foi um choque. Foi lá que percebi que Fortaleza não era a maior e melhor
cidade do mundo. Recife se localiza onde
os rios Beberibe e Capiberibe se juntam para formar o Oceano Atlântico.
Lá,
naquela época, quem não era Coutinho era coitado; quem não era Cavalcante era
cavalgado e quem não era Marques era marcado.
Os
Recifenses eram socialmente impenetráveis. Não nos discriminavam no convívio
acadêmico, mas não admitiam o menor relacionamento social ou familiar. Das
centenas de colegas recifenses com quem convivi, em 06 anos, só frequentei a
casa de uma colega que eu ajudava nas provas, e que lá pelas tantas passou a
amenizar a minha solidão.
Politicamente
havia muita efervescência, pois era ano eleitoral. Por conta da federalização
da Faculdade, o vestibular atrasou e só foi realizado em fevereiro. Os
candidatos reprovados nos outros Estados correram para lá, o que fez com que
houvesse mais de mil candidatos...
Eram
125 vagas, passaram 250. Como era ano eleitoral, e no Brasil criou-se a figura
do Excedente de Medicina, salomonicamente
criou-se uma turma noturna, os professores recebiam em dobro e viva o Brasil!
No 2º
ano não tinha eleição, não houve verba para a 2ª turma, juntaram-se todos,
incluindo-se aí os reprovados das turmas anteriores, o que dava um total de
333. O Professor Bezerra Coutinho, nos recepcionou dizendo: - Os senhores são a metade da besta fera! Ao que meu colega China rebateu baixinho - E o
senhor é a outra metade! Em uma sala
projetada para 40 alunos espremiam-se os que chegavam primeiro.
5.
Em
que ano você concluiu o Curso de Medicina? E por que fez opção pelo RN?
- Colei grau no Teatro Santa
Isabel, na tarde do dia 08.12.1955. E, engraçado, eu não sabia que na
solenidade de colação de grau o doutorando tinha que apresentar o anel, e o
padrinho colocava no dedo anular esquerdo do diplomado. Como a chamada era pelo
número da matrícula e a minha era antes de Araken, pedi o anel dele emprestado.
Quando voltei com o anel dele no dedo me neguei a devolver. Só entreguei quando
o paraninfo repetiu a chamada. Presepada até na formatura... A opção pelo RN se
deu quando eu estava no Rio de Janeiro, fazendo o curso de Sanitarista, no Ministério
de Saúde, e a especialização em Ginecologia, no Hospital Moncorvo Filho, e
recebi um telefonema de um senhor, que se identificou como Deputado Federal
Eider Varela, amigo de meu cunhado, Dr. Etelvino Cunha. Disse-me ele que tinha
construído um hospital maternidade em Ceará-Mirim, e precisava de alguém para
dirigi-lo. Expliquei que era funcionário do governo da Paraíba, estava me
especializando no Rio de Janeiro por conta do Estado, e que iria expor o caso
aos meus superiores e, se eles me liberassem, eu aceitaria. Ele então propôs
que, antes disso, fosse a Ceara-Mirim para saber ao certo se me convinha. Foi o
que fiz, e meu amigo de sempre, Wilson Braga, Deputado que me levou para
Paraíba não fez a menor objeção. Dirigi o hospital maternidade de Ceará-Mirim
por 17 anos, realizei 1.208 intervenções cirúrgicas, fiz mais de 10.400 partos
e batizei 221 afilhados.
6. Fale
um pouco de sua vida universitária como professor de Ginecologia e Obstetrícia.
- No início, a Clínica
Ginecológica funcionava em uma enfermaria do Hospital Miguel Couto, hoje Hospital
Universitário Onofre Lopes. O Catedrático era o Professor Etelvino Cunha e os
assistentes eram, além deste escriba, o Dr. William Pinheiro, que se intitulava
Chefe de Clínica, e que cuidava da parte burocrática, pouco atuando no
atendimento clínico e na parte científica. A Doutora Zebina Ventura chefiava o Laboratório
de Citologia e eu tocava a parte cirúrgica. As doutoras Dalila Leal e Celli
Carvalho cuidavam do ambulatório e da enfermaria. Era um trabalho prazeroso,
pois o Professor Etelvino dirigia tudo com zelo e proficiência, fazendo uma
seção semanal de Análise de caso e, mensalmente,
um balanço geral dos trabalhos.
7. Como
é chegar aos noventa anos lúcido e feliz? Qual é o segredo?
- A lucidez pode se
atribuir à genética, ao hábito da leitura e a permanente atividade intelectual.
Mas isto é tudo muito subjetivo. Quanto à felicidade, creio que, no meu caso,
depende da capacidade de fazer o BEM e a de evitar fazer o MAL. Digo isto
porque hoje, aos 90 anos, o que me alegra é recordar o BEM que pude fazer e o
que me entristece é o MAL que não consegui evitar.
8. O
mundo atravessa uma situação dramática, muitos avanços tecnológicos e atrasos
humanitários, como a guerra e a violência de toda ordem. Como você vê esta
questão?
- Se analisarmos estatisticamente a coisa muda
de figura. Quando CAIM matou ABEL, qual o percentual da humanidade que ele
destruiu? E a 2ª guerra mundial qual o percentual de mortos? Também temos de considerar que, com a
universalidade da comunicação, até uma queda de bicicleta na Cochinchina chega
ao nosso conhecimento. Além do mais, a violência faz parte do nosso DNA. Lembro
agora da cena final de Guerra do Fim do
Mundo, sobre a campanha de CANUDOS, onde um garoto de 10 anos, do alto do
morro da Favela, com um fuzil a tiracolo, observa os 05 últimos resistentes do Conselheiro
serem assassinados pelas forças legalistas. Tristonho ele proclamou: - Tem jeito não, enquanto existirem dois
homens, um tem que matar o outro tem que morrer.
9.
Você
transformou o hospital de Ceará-Mirim em uma verdadeira Universidade,
orientando muitos jovens. Lembra o nome de alguns?
- Lembro de todos;
agora, na hora de citar os nomes sempre se corre o risco da omissão. Uns, porque se distanciaram por injunções da
vida, mas aqui e acolá vem-me à lembrança alguém que pensava ter esquecido.
Todos venceram na vida, e nenhum esqueceu a lição mais importante que procurei
transmitir: - Nunca transforme o ALTAR da
Medicina em balcão de feira livre.
10. Além
de Medicina, você teve uma participação política, exercendo o cargo de Prefeito
de Ceará-Mirim. Como foi essa experiência?
- Eu trabalhava há 12 anos em Ceará-Mirim. Em
1968, fui procurado pelo Vice-Prefeito, Manuel Sobral e pelo decano dos
vereadores, Antão Barreto, que me convidaram para ser candidato a Prefeito. De
pronto, recusei; disse que não era político, não gostava de política etc. Eles contra argumentaram: - O senhor vive falando que os políticos não fazem nada pela saúde e
educação do município. Estamos lhe oferecendo a oportunidade de fazer. Foi
um baque! Respirei fundo e respondi:
- Se é um desafio, eu aceito!
Selou-se a minha sorte. Das 43 urnas, só perdi na urna do feudo do meu
adversário.
Quando
assumi, Ceará-Mirim tinha 15 escolas, onde estudavam 700 alunos. Quando encerrei
o mandato tinha 4.000 alunos estudando em 43 escolas.
Quando
meu sucessor assumiu, fechou a maioria das escolas, mas justiça se faça, a 1ª
que ele fechou tinha o nome de um tio dele. Criei o serviço de saúde do
município e, com uma kombi odontológica doada por Dix-Huit Rosado, através do
INCRA, mantinha em funcionamento 10 Mini Postos de saúde pelo interior do
município.
11 - O
Presidente da Câmara, na época, era seu amigo-irmão Murilo Pinto. Fale um pouco
desta grande figura da Odontologia do RN.
- Quando assumi a direção do HMCM, Murilo
Pinto era o responsável pelo setor Odontológico. A sinergia foi imediata! Tornei-me
Médico da família dele e, juntos, tocamos a Saúde do município. Fiz o parto de
sua última filha, que hoje é minha nora. Sempre vi em Murilo Pinto a capacidade
didática inata que gera os grandes professores. Quando se falou na
federalização da Faculdade de Odontologia, os amigos mais próximos, comandados
por sua esposa, Stela Pinto, pressionamos para que ele aceitasse o convite que
recebera de um dos professores, para assumir o posto de Professor Assistente.
Ele relutava porque sempre procurava esconder sua alta capacidade pedagógica.
Foi político por injunções
familiares e sociais. Foi Vereador por 10 anos, sempre usando o mandato em prol
do município, procurando apaziguar os mais radicais, e contribuindo sempre para
a paz da família Ceará-Mirinense. No último ano do meu mandato de Prefeito,
tentei por todos os meios fazê-lo aceitar ser candidato. Ele nunca aceitou,
mesmo diante da alta probabilidade de ser candidato único. O poder não o
seduzia.
12.
O
Dalai Lama escreveu um livro recente conclamando os jovens a uma revolução
ética e humanitária no século 21. Como médico quais os concelhos que você daria
aos jovens da atualidade.
- Com todo o
respeito que o Dalai merece, discordo do foco da questão: - A dinâmica
sociológica demonstra que o comportamento ético-humanitário de uma geração, é
formado pelo exemplo da geração anterior. Como é que você pode exigir de um
jovem que se comporte dentro dos limites da boa educação, quando ele vê
exatamente o contrário ser praticado pelos mais velhos? A televisão, o rádio e
as redes sociais que podem servir de exemplo, fazem exatamente o contrário. Os
artistas de novela, não se sentam, se jogam em cima da cadeira, de preferência
com os pés em cima do acento. É comum apresentador de TV limpar o nariz em
público. E por aí vai... Como é que você quer que o jovem faça uma
revolução ética-humanitária, se a geração atual, pratica, prega e enaltece a
violência, a sensualidade, a ambição, a corrupção e o desrespeito?
É muito fácil ser casto, honesto e
pacífico dentro de um convento ou numa comunidade do Himalaia. Difícil é ser
tudo isto no meio em que vivemos, lutando 24 horas por dia para sobreviver!
è O jovem Murilo Barros, na
Praia de Muriú, com a sua afilhada, Patrícia Cristina Aragão, filha do Médico,
Dr. José Maria Aragão.